Carta Aberta

Em Defesa da Assistência Social / SUAS no Estado do Rio de Janeiro

“Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas participar de práticas com ela coerentes.”

Paulo Freire Pedagogia da indignação.

 

Vivemos no estado do Rio de Janeiro a iminência de gravíssimo retrocesso quanto aos avanços conquistados pela Política Pública de Assistência Social executada através do Sistema Único de Assistência Social – SUAS, previsto na Constituição de 1988 e regulamentado através da Lei Orgânica de Assistência Social (Lei nº 8.742/1993 e alterações dadas pela Lei nº 12.435/2011).

O Governo do Estado do Rio de Janeiro, que vive a mais grave crise financeira de sua história, para minimizar os impactos da crise administrativa instalada e, visando o enxugamento da máquina pública estadual, conforme noticiários propõem a redução do número de Secretarias: o que nos parece inevitável. Porém, o que nos parece absurdo é que entre as Secretarias a serem extintas esteja a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH).

Além da Assistência Social, a SEASDH é responsável pela condução de várias outras políticas públicas garantidoras de direitos no estado. Ainda que os Direitos Humanos ganhem maior destaque, em função da nomenclatura da Secretaria, não se pode esquecer das políticas específicas para Mulheres, Pessoas com Deficiência, Crianças e Adolescentes, para LGBT, Igualdade Racial, de Combate a Intolerância Religiosa, das Política de Segurança Alimentar e Nutricional.

Nesse sentido, a despeito das demais políticas específicas, parece haver uma diretriz reducionista do governo, que reorientaria a pasta dos Direitos Humanos, propondo sua vinculação à Casa Civil. Por sua vez, a Política de Assistência Social, assim como toda a direção estadual do Sistema Único de Assistência Social, na melhor das hipóteses, passaria a ser hospedada pela Secretaria Estadual de Saúde, comprometendo os sistemas SUS e SUAS, que têm forte interface, mas diretrizes e execução de seus serviços claramente diferenciadas.

Frente ao agravamento da crise econômica, faltam cada vez mais postos de trabalho. Consequentemente, o incremento das vulnerabilidades de milhares de famílias só faz aumentar as demandas pelos serviços do SUAS. Assim, independente de qualquer corte de despesas que isso possa significar, e que estudos tenham fundamentado a proposta de extinção da SEASDH, fica a pergunta sobre quais critérios foram utilizados para definir as prioridades do Governo do Estado do Rio de Janeiro.

O direito, sobretudo é exercício de cidadania e, o Sistema Único de Assistência Social é uma das expressões mais legítimas desse exercício. Para os trabalhadores do SUAS – em torno de 20 mil só no estado do Rio – esse exercício é também um ofício, um ofício que se expressa pelo comprometimento ético e político em defesa dos segmentos mais vulneráveis da população.

O SUAS é uma conquista do povo brasileiro, cujas lutas remontam os movimentos sociais que culminaram na redemocratização do Brasil. Nesse sentido, os movimentos sociais no estado do Rio de Janeiro sempre estiveram presentes, sendo a capital do estado um dos palcos privilegiados para fazer com que o exercício da democracia pudesse ganhar a visibilidade necessária para as mudanças pretendidas.

Nos últimos anos, o Governo do Estado do Rio, por meio da SEASDH também foi protagonista de grandes conquistas para o SUAS. Fora a construção de uma relação de confiança com os 92 municípios fluminenses, ganhou ainda mais notoriedade no fortalecimento do pacto federativo quando venceu a lógica convenial e passou, tal como o Governo Federal, a cofinanciar os serviços socioassistenciais nos municípios por meio da transferência direta de recursos do Fundo Estadual de Assistência Social (FEAS) para os Fundos Municipais de Assistência Social (FMAS).

Graças a esses esforços, pode-se contabilizar atualmente em todo o estado, equipamentos com estrutura física e recursos humanos definidos em regulação única nacional materializados em: 452 CRAS (Centros de Referência da Assistência Social), que servem como referência para atendimento de aproximadamente 4.542.000 mil famílias por ano. Há também no estado 119 CREAS (Centros de Referência Especializados da Assistência Social) atendendo às mais diversas formas de violações de direitos e 19 Centros Pop (Serviços Especializados para População em Situação de Rua).

Na alta complexidade do SUAS são 337 unidades de acolhimento institucional ativas nos municípios, o que corresponde a 7.950 vagas para colhimento de crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, mulheres em situação de violência e pessoas em situação de rua. Isso sem mencionar mais 469 vagas ofertadas em serviços geridos pela própria SEASDH e mais 325 vagas ofertadas em parceria com Entidades e Organizações não governamentais.

Atualmente, toda essa rede de serviços está sob ameaça. Desde 2014, os municípios vêm sofrendo com a interrupção dos repasses de recursos do cofinanciamento estadual para o SUAS. Isso tem resultado em perdas importantes na execução dos serviços, especialmente de recursos humanos. Sem um comando gestor único para o SUAS na esfera estadual, torna-se praticamente nula a expectativa dos gestores municipais em verem reestabelecidos esses repasses. Tudo isso sem mencionar a insegurança dos trabalhadores da SEASDH que, sem serem estatutários, correm risco de demissão em massa, agravando a descontinuidade das políticas até então geridas pela Secretaria, perdendo-se, além do corpo de profissionais qualificados, a memória institucional no âmbito da gestão estadual.

Diante dos últimos acontecimentos, na iminência do desmonte do órgão gestor do SUAS na esfera estadual, é preciso que usuários, trabalhadores, gestores e outros atores possam compreender o quanto é imperiosa a recusa de que o estado do Rio de Janeiro seja o protagonista de tal retrocesso. Há o risco de se criar um efeito cascata para que o mesmo ocorra nos 92 municípios fluminenses. Tudo isso sem mencionar a criação do precedente para que tal desmonte do SUAS seja copiado também por outros estados da federação.

Sem desconsiderar a crise, mas sobretudo considerando, o protagonismo deste Estado na organização e oferta dos serviços desta política pública, afirmamos e reafirmamos que, esse tipo de protagonismo – o da desconstrução e do retrocesso – não gostaríamos que fosse um legado a ser deixado do estado do Rio de Janeiro.

Conforme previsto na sua Lei Orgânica, a assistência social é direito do cidadão e dever do Estado. Sob esses aspectos, deve ser compreendida como Política de Seguridade Social não contributiva e “realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade”. Tais ações se materializam sob a forma de um conjunto de serviços e benefícios, tipificados e regulamentados, ofertados atualmente em todo território nacional, visando ao atendimento e ao acompanhamento de famílias em situação de vulnerabilidade e riscos sociais. Todos os atores que contribuíram para a construção do SUAS no estado do Rio de Janeiro, se orgulham de serem intransigentes no cumprimento dessas orientações.

A gestão das ações da política de assistência social se organiza sob a forma de um sistema descentralizado e participativo, o SUAS, integrado por órgãos gestores da assistência social (as Secretarias) nos três entes federados; pelos respectivos Conselhos (federal, estaduais e municipais) de Assistência Social; por entidades filantrópicas e organizações prestadoras de serviços com vínculo ao SUAS; bem ainda pelas representações dos trabalhadores e dos usuários do Sistema. A extinção do órgão gestor na esfera estadual compromete todos os demais segmentos que compõem o SUAS, e as consequências são imprevisíveis, para o estado do Rio, especialmente quanto à possibilidade de suspensão de recursos federais para os nossos 92 municípios.

O ano de 2015 marcou uma década da instituição do SUAS no Brasil e, nesses dez anos, muito se avançou para sua efetiva consolidação, especialmente no que se refere à implantação da rede de serviços socioassistenciais. No entanto, a oferta da proteção social estatal impõe outros desafios à organização desse Sistema, sobretudo, num contexto de crise orçamentária e financeira pela qual atravessam os Governos Federal e Estadual, assim como as Prefeituras Municipais.

No Brasil, sua implementação permitiu avanços significativos na qualidade de vida da população mais pobre, mudando a realidade de muitos municípios, movimentando a renda local, além de revolucionar a forma de acompanhamento às famílias e o fortalecimento dos espaços de controle social.

Nos dias de hoje, vivemos um momento específico de crise na economia global, com rebatimentos diretos na economia do país. Também estamos lidando com uma das maiores crises políticas já vividas pelo Estado Brasileiro, sendo fundamental a garantia de todas as conquistas do processo democrático, além do fortalecimento de nossas instituições e reafirmação da Assistência Social, como Política Pública, conforme sinaliza nossa Constituição Federal de 1988.

NÃO AO RETROCESSO!

NEM UM PASSO ATRÁS, NENHUM DIREITO A MENOS!