Conforme preconizado na Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) tem nos seus fundamentos a condição de prioridade absoluta da população infantojuvenil e sua proteção integral como sendo dever da família, da sociedade e do Estado.
Para conversar sobre o estatuto, o CRESS Rio de Janeiro convidou a doutora em Serviço Social Senir Santos da Hora, para uma entrevista ping-pong. Com experiência na área da saúde da criança e do adolescente no Instituto Nacional do Câncer (INCA/MS) e no Hospital Universitário Antônio Pedro (HUAP/UFF), Senir atuou como representante do CRESSRJ no Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente no Rio de Janeiro.
CRESS Rio – Qual a importância do ECA no Brasil e qual a urgência de que se respeite como estatuto?
Senir – No dia 13 de julho de 2022, comemorou-se os 32 anos de Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que expressa uma conquista da sociedade brasileira em sua luta incessante na constituição de um sistema de garantia de direitos, que abarca políticas sociais básicas e especiais, específicas ou transversais ao segmento infanto-juvenil a serem executadas, conjuntamente, pela família, comunidade e Poder público.
Reconhece-se a importância do ECA enquanto mecanismo imprescindível para a promoção da proteção integral de crianças e adolescentes no Brasil. A defesa dos princípios da Doutrina da Proteção Integral torna-se urgente frente às profundas mudanças no redirecionamento do papel do Estado impulsionando a liquidação de direitos sociais, o extermínio de crianças e adolescentes pretas e pobres, a desorganização política dos sujeitos coletivos, os desmontes dos espaços de participação popular (o decreto presidencial 10.003/2019 que retira a participação social do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente -Conanda) e a criminalização dos movimentos sociais.
O ECA comemora 32 anos num contexto permeado de profundos retrocessos à garantia de direitos de crianças e adolescentes e suas famílias no Brasil. Com o recrudescimento das expressões da questão social e com a crescente desresponsabilização do poder público, que retira o financiamento das políticas socias, observa-se sucessivas tentativas de deslocando das questões relativas à infância ao campo do clientelismo, do assistencialismo e do voluntariado. Como não mencionar os cortes orçamentários na educação e o projeto do legislativo que autoriza e regulamenta a educação domiciliar de crianças de acordo com a vontade das famílias (homeschooling), constituindo mais um ataque ao direito universal das crianças e adolescentes de acessarem um ensino público e de qualidade.
CRESS Rio – O que o ECA representa hoje para crianças e adolescentes brasileiras, em especial do estado do Rio de Janeiro?
Senir – Sabe-se que o percurso de luta por direitos das crianças e adolescentes no Brasil é marcado por muitos desafios. Desde o período colonial até o início do século XX, não existia no Brasil qualquer intervenção estatal em termos de políticas de atendimento à infância. Nesse período, todo atendimento à criança e ao adolescente era realizado por iniciativas de natureza religiosa, no escopo de duas perspectivas: assistência e repressão. A infância não era o foco de atenção especial, pois, caracterizava-se pela passividade, pela incapacidade, dependência e pelo silêncio. Esse contexto sinalizava que os direitos humanos de crianças e adolescentes ainda não eram uma construção de cidadania.
Mas, foi a partir de 1980, com o movimento pré-constituinte de transição política no Brasil – período marcado por intensas reivindicações populares na luta pela redemocratização do país e por melhorias das condições de vida dos brasileiros – é que as questões relativas à infância e a juventude passaram a ser questionadas e discutidas, com uma nova proposta de doutrina de proteção integral. Toda efervescência de mobilização social e de luta da sociedade civil organizada em diversos movimentos resultaram na Constituição Federal (CF) de 1988, que permitiu estabelecer um novo modelo de sociedade e de proteção social, instituindo uma série de propostas em torno da saúde, educação, habitação, saneamento básico, custo de vida, questões da infância e juventude, entre outros.
Destaque para a garantia da proteção social ao segmento infanto-juvenil como prioridade absoluta em consonância à proposta constitucional, foi assinado no dia 13 de julho de 1990, a Lei nº 8.069/1990 –ECA- que se alicerçou em dois pilares básicos: ‘a concepção da criança e do adolescente como sujeitos de Direitos e a afirmação de sua Condição Peculiar de Pessoa em Desenvolvimento’. Ademais, o Estatuto é fruto de uma luta coletiva da sociedade brasileira, que visa prosseguir com as iniciativas de políticas públicas voltadas à população infanto-juvenil estabelecidas na CF, em seu Art. 227, que afirma: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
CRESS Rio – Quais as principais diferenças entre o “Código de Menores”, de 1979, e o ECA?
Senir – O código de 1979 que adotou a Doutrina Jurídica da Situação Irregular, enquanto instrumento normativo regulador do Direito do Menor, restringia-se apenas à tutela de crianças e adolescentes pobres, dentre elas destacam-se: menores infratores, vítimas de maus tratos, órfãos e abandonados. Esse código mantinha a nítida separação entre infância (filhos da classe dominante) e os denominados de menores (filhos da classe trabalhadora), pois não garantia proteção e assistência a todas as crianças e adolescentes, apenas àquelas que fossem consideradas como estando à margem da situação estabelecida como “normalidade”, em que a situação de pobreza determinava a irregularidade social.
A infância foi “judicializada”, resultando disso o termo “menor” que foi utilizado de forma preconceituosa e discriminante para denominar crianças e jovens pobres, abandonados e delinquentes. A estes o Estado intervia com ações repressivas, de forma discricionária e ao arbítrio do juiz. O juiz era quem determinava, através de pareceres técnicos, o futuro das crianças e adolescentes. O juiz, que tinha autoridade máxima de decidir sobre os interesses dos menores, e determinava os destinos dos mesmos: se eles seriam internados ou colocados em famílias substitutas, adotados ou até punidos. O juiz de menores decidia, em nome da criança, o que seria melhor para ela. Pois, a criança não era vista como sujeito de direitos. E a internação era realizada na época sem qualquer distinção entre menores infratores, órfãos e abandonados.
Esse Código defendia a submissão de adolescentes mais de 16 e menos de 18 anos considerados infratores à lei penal, com encaminhamento, na falta de estabelecimento adequado ou quando o juiz avaliava ser necessário, ao cumprimento de pena em estabelecimento que aprisionava adulto. As práticas de proteção social, nesse período, eram predominantemente repressivas, assistencialistas, porque as políticas sociais estavam voltadas para o controle e repressão dos pobres. Pelo Código de 1979, a criança, o adolescente e as famílias eram responsabilizadas e punidas pelas condições a que estavam expostos. Mas com o ECA, tem-se o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos.
O ECA também representou e representa um movimento de ruptura com a organização clientelista-repressiva do Estado e da sociedade. Com o ECA, não mais se prevê a destituição ou suspensão do poder familiar sob a justificativa de pobreza como acontecia na legislação anterior. Com a Doutrina da Proteção Integral, verifica-se o combate ao trabalho infantil nas suas diferentes formas. Verifica-se, ainda, a desjudicialização e municipalização do atendimento à infância, transferindo-o para uma nova estrutura – o conselho tutelar, por exemplo.
O ECA pressupõe a superação do antigo modelo de cunho repressivo-preventivo (punir para depois educar), além do combate ao controle judicial da pobreza. Nos termos de convivência familiar e resposta diante da prática do ato infracional, o ECA estabelece a inimputabilidade com idade inferior a 18 anos, com aplicação das medidas socioeducativas, levando em consideração o fato de que crianças e adolescentes são pessoas em estágio peculiar de desenvolvimento.
CRESS Rio – No Código de Menores um dos “ objetivos” era “tirar de circulação” jovens que atrapalhavam a ordem social. E o que muda nessa visão com o ECA e como essa visão está hoje, no ponto de vista das instituições e dos profissionais que nelas trabalham?
Senir – No código de menores de 1979, as crianças, adolescentes e jovens eram punidos por estarem em situação decorrente da pobreza e da omissão do Estado, caracterizado pela ausência de suportes e políticas públicas. Assim, esses que não se enquadravam no modelo social considerado como normal, eram institucionalizados para que fossem ajustados aos moldes sociais considerados adequados.
Mesmo com o ECA – que rompeu com as amarras de uma ideologia fundada na vigilância e na repressão, presente no código de menores de 1979 – verifica-se, ainda hoje, representações conservadoras do antigo Código de Menores, com sucessivas tentativas de regressão dos direitos da criança e do/a adolescente. Como não mencionar a visão por parte de profissionais e instituições que defendem a redução da maioridade penal, o aumento do tempo máximo de internação, a aceleração dos processos de destituição familiar, o extermínio de corpos pretos e pobres pelas forças do próprio Estado, entre outras medidas que moralizam as expressões da questão social.
Nós, assistentes sociais, somos desafiados cotidianamente à compreensão crítica das particularidades dos espaços de intervenção, as tessituras de suas relações e a dinâmica que as engendra, objetivando a superação de lógicas moralistas e punitivas, que culpabilizam a família e colocam-na como centro do “problema”. A superação da padronização de comportamentos e criação de estereótipos e de estigmas, que reforçam uma gama extensa de preconceitos e discriminações proferidas às famílias de crianças e adolescentes, em especial as pretas, pobres e periféricas que muitas vezes são julgadas como sendo incapazes de promover cuidados.
CRESS Rio – Segundo o estatuto, o acesso integral das crianças e adolescentes à saúde pública, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) estaria garantido, assim como o fornecimento de medicamentos, próteses e outras tecnologias para tratamento aos que necessitarem. Como isso ocorre de fato, hoje, no Estado do Rio de Janeiro?
Senir – Não se pode deixar de considerar que, na atual conjuntura a garantia de direitos vem colidindo diretamente com a lógica do capitalismo contemporâneo, que se adensa pela política econômica deflagrada com a crise estrutural e com o contexto de crise sanitária provocada pela COVID-19, e que vem culminando com a agudização da pobreza e o acirramento da desigualdade, cujas tendências destrutivas se estendem por toda a parte, através da expropriação e violação das condições fundamentais de vida da classe trabalhadora, com o desmonte dos direitos historicamente conquistados por meio de alterações legislativas, congelamento de recursos e falta de financiamento nas políticas públicas, trazendo um impacto direto nas políticas protetivas para crianças e adolescentes.
Vive-se um contexto de constantes ataques à política de saúde brasileira, que tem sido alvo de fortes tentativas de quebra da universalidade do acesso e da privatização dos serviços. Sabe-se que a saúde sempre foi a política mais atingida pelos ajustes fiscais, o que elucida a agressividade histórica das medidas de austeridade para a concepção de universalidade dessa política. No cotidiano de intervenção profissional na área da saúde, pode-se identificar uma demanda crescente por orientações e encaminhamentos para órgãos jurídicos na perspectiva de garantia de medicamentos, equipamentos e insumos indispensáveis e que, em flagrante desrespeito ao direito à saúde, não estão disponíveis na rede de atendimento.
O cenário vem revelando a inoperância das ações intersetoriais, no âmbito da garantia do acesso a medicamentos, insumos, dentre outros recursos necessários para a efetivação de um atendimento integral de saúde. Políticas públicas são constantemente demandadas no que tange ao suporte para a efetivação de um acompanhamento continuado das crianças e adolescentes, bem como o acesso a serviços de saúde de diferentes níveis de atenção, especialidades e tecnologias que estejam de acordo com as necessidades de saúde da criança e do adolescente. Assim, a ausência do Estado, nas responsabilidades constitucionalmente estabelecidas, implica diretamente no acesso integral de crianças e adolescentes à saúde pública.
CRESS Rio – Qual é a importância da participação do CRESSRJ no Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente?
Senir – O CRESS vem intervindo no campo da defesa de direitos em prol da proteção social e integral de crianças e adolescentes, agregando aos debates em torno da infância a presença do controle social, por meio de representação externa no Fórum de Direitos da Criança e do Adolescente. O CRESS vem somando suas bandeiras de luta com diversos coletivos, movimentos sociais e populares em prol da proteção social e integral de crianças e adolescentes e do reconhecimento destes como sujeitos de direito e também como sujeitos de sua própria história. Sua contribuição nesse espaço (DCA) tem sido fundamental frente às diversas formas de violência social, determinada por processos excludentes de natureza econômica, política e social. Porque apesar das conquistas normativas, a garantia dos direitos requer permanente e intensa luta e investimento para a sua efetivação.