Carta síntese do 51º Encontro Descentralizado Sudeste

Tema: Nossos Corpos não são alvos! Serviço Social na Resistência cotidiana para
transformação societária radical.

 

Carta oficial

Nós, assistentes sociais, presentes no 51º Encontro Descentralizado do Conjunto CFESS-CRESS da Região Sudeste, entre os dias 24 a 26 de julho de 2024, na cidade do Rio de Janeiro, defendemos os princípios éticos da profissão, reafirmando a “liberdade enquanto valor ético central”, assim como o “empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, a participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças”. O encontro é um espaço coletivo político-administrativo, consultivo, democrático, formativo e de trocas que reúne as delegações dos estados do Espírito Santo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo.

O tema central do encontro movimenta e chama a categoria a pensar o debate da violência contra corpos que não se enquadram na padronização desse sistema necrófilo e nos convida a gritar que “NOSSOS CORPOS NÃO SÃO ALVOS! Serviço Social na resistência cotidiana para a transformação societária radical”. O conjunto CFESS-CRESS, juntamente com a ABEPSS e a ENESSO, chama atenção para essa temática no sentido de nos fazer refletir sobre a realidade cotidiana que nos inserimos e como o Serviço Social se coloca nesse lugar.

Compreendemos que a luta contra a extrema direita mundial conservadora não se encerra nos processos eleitorais, devido aos limites impostos no contexto da democracia burguesa. Mesmo com a eleição de um governo alinhado aos campos democráticos e progressistas, no Brasil, vemos um congresso formado majoritariamente por uma bancada branca, composta por sujeitos que veem, sim, nossos corpos como alvos. Legislando em prol dos interesses do grande capital, em detrimento das demandas da classe trabalhadora, reafirmam posições conservadoras, irracionais e individualistas, na contramão de fundamentos científicos.

Esse avanço do conservadorismo também se materializa por meio do uso das grandes mídias e de ferramentas tecnológicas de disseminação de falsas verdades (fake news) e pelo investimento em narrativas amparadas em um discurso de defesa da pátria, família e preceitos religiosos específicos, contribuindo para o retrocesso da sociedade. Cabe destacar a intensificação deste cenário em períodos eleitorais, principalmente por parte da extrema direita.

Como exemplo destacamos a recente proposição do PL da Gravidez Infantil (Projeto de Lei nº 1904/2024) que representa um retrocesso e uma violação ao direito de pessoas que gestam ao aborto legal nos serviços públicos de saúde. A proposta apresentada prevê a condenação das pessoas que realizem o aborto, ainda que nas situações legalmente previstas, reforçando práticas conservadoras que ainda perpassam esse debate. Evidencia, ainda, uma desproteção das infâncias e juventudes. O PL apresentado é acompanhado pelo Conjunto CFESS/CRESS com preocupação, tendo em vista os princípios defendidos e reafirmados pela profissão e a defesa do acesso às diferentes políticas públicas para a garantia de direitos reprodutivos e, sobretudo, o direito à vida.

Atualmente, vivenciamos um cenário de ampliação das múltiplas formas de violência que tem perfil de raça e gênero. Os dados apresentados pelo Atlas da Violência de 2024 sobre o estado do Rio de Janeiro refletem um aumento da violência contra os corpos pretos em abordagens policiais marcadas pelo viés racista.

Ainda no que se refere a violência perpetrada pelo Estado, o domínio dos territórios no estado do Rio de Janeiro pelas milícias com o uso do aparato estatal e da força se coloca como mais uma forma de exploração a que parcela da população fluminense está submetida.

Além disso, a realidade do Rio de Janeiro apresenta elementos de complexidade com a união do tráfico com as igrejas pentecostais, cerceando a expressão da liberdade religiosa pela população de terreiros de religiões de matriz africana, expulsando-as de territórios e reproduzindo a intolerância e o racismo religioso. Tais condutas encontram respaldo simbólico com a promulgação de legislação municipal instituindo o Dia do Conservadorismo, que tem como bandeira uma religião específica e um modelo excludente de família.

No Estado de Minas Gerais, encontramos um cenário desafiador que exige atenção e ação para que não esqueçamos as diretrizes do nosso projeto ético-político: a ganância das mineradoras vem maciçamente destruindo nossos corpos, nossa cultura, nosso meio ambiente e ceifando vidas. Na data de 05 de novembro de 2015, houve o rompimento da barragem de Fundão em Mariana da Empresa Samarco, e em 25 de janeiro de 2019, uma nova catástrofe no solo mineiro com o rompimento da Barragem do Córrego do Feijão da Empresa Vale S.A, em Brumadinho.

Ainda é de difícil mensuração o impacto social destes acontecimentos, que poderiam ter sido evitados. Devido à morte de centenas de pessoas, das questões ambientais e do descaso e abandono destas empresas, que além de arrastarem o processo judicial de indenização e reparação por anos, não cessaram seus lucros que crescem a cada ano.

Enquanto seus sobreviventes e familiares das pessoas que faleceram tentam retomar suas vidas e criar novos vínculos e pertencimentos em outro território: até o momento, os corpos de 03 vítimas ainda não foram encontrados em Brumadinho.
Ainda é contundente relembrar que a fúria capitalista não tem fim: um dos maiores cartões postais da capital de Minas Gerais, a Serra do Curral, está fortemente ameaçada. Isso nos exige mais atenção, fôlego e mobilizações para que haja uma verdadeira proteção efetiva dessa biodiversidade ambiental, do nosso patrimônio, já que há um projeto em trâmite para transformá-la em parque nacional tão somente para proteger as áreas e os interesses das mineradoras.

O estado do Espírito Santo possui a violência como cerne da sua formação social, sendo um dos últimos estados a abolir a escravidão. Historicamente é uma região que mantém heranças eurocêntricas e colonizadoras, a partir da invisibilização do modo de ser dos povos tradicionais que foram centrais no desenvolvimento do estado. Apesar disso, etnias indígenas, povos quilombolas e camponeses, e comunidades periféricas se unem e resistem nos diversos espaços e meios urbanos, interiores e litoral.

Essas diversidades são vistas como alvo pelas políticas de estado, principalmente pela segurança pública; pelo fundamentalismo religioso, com a disseminação de igrejas neopentecostais nos territórios periféricos; pelos poderes legislativo, executivo e judiciário,
compostos majoritariamente por corpos que seguem a ordem cisgênera, heterossexual, branca e conservadora, com destaque para a recente aprovação do Dia do Homem pela Câmara de
Vitória.
A incidência da violência é direcionada a corpos específicos. Por alguns anos o estado esteve no topo do ranking de violência contra as mulheres. Nos primeiros quatro meses do ano de 2024 os registros de violência doméstica aumentaram e foram registrados 8.039 casos nos termos da Lei Maria da Penha. Em relação a Segurança Pública, atualmente cerca de 23 mil pessoas estão encarceradas, extrapolando sua capacidade, sendo mais de 75% desse contingente, pessoas negras. No que tange a violência policial, no ano de 2022 pelo menos 65 pessoas foram mortas por policiais durante serviço ou em horário de folga, no entanto vale destacar que esses dados não dão conta de expressar a real dimensão do caráter truculento e racista da Polícia Militar do estado.

O Espírito Santo também é hostil para corpos dissidentes da norma cis-heteronormativa. Segundo o Anuário da Segurança, em 2022 houve um aumento de todos os crimes contra a população LGBT no estado, sendo o que registrou o maior número de homicídios dessas pessoas em todo o país, com um aumento de 350%.
Em São Paulo, os ataques vêm duplamente do Estado que promove a necropolítica radicalmente. Nos matam, nos deixam morrer e atacam quem tenta, de alguma forma, reparar a dívida que tem com a população. Em um cenário onde a Casa do Povo objetiva aniquilar a população em situação de rua por meio de lei que proíbe ou condiciona a doação de alimentos realizada pela Sociedade Civil, exemplos que refletem o descompromisso com a nossa sociedade.

Não conseguimos observar que nossos corpos como classe trabalhadora também são alvo diariamente. Corpos Trans vão ao chão diariamente e a população negra continua massivamente encarcerada. O adoecimento passou a ser considerado normal, pois estamos sem a proteção que necessitamos e assim naturalizado o caos.
Neste contexto, queremos reafirmar a importância e a urgência da defesa do Projeto Ético-Político Profissional e dos princípios orientadores da nossa profissão, sobretudo a liberdade como valor ético central. Sabemos que os desafios da atuação profissional são inúmeros e a categoria vem se deparando com o avanço das formas de precarização da formação e do trabalho, refletidos nos estágios de pós-graduação, na residência no campo sociojurídico, nas terceirizações, na pejotização, dentre outras.

Por outro lado, temos ciência que a defesa de nossas pautas requer investimento e compromisso com o coletivo. Por isso, no 51º Encontro refletimos sobre as estratégias de capilaridade das ações desenvolvidas nos Comitês, Comissões, NUCRESS/NAS visando atingir amplamente a categoria profissional.

Salientamos ainda a responsabilidade da nossa atuação profissional no uso de instrumentos e na produção de documentos técnicos que incidem diretamente na vida da população e requerem investimentos na formação continuada com vistas à defesa de direitos e não a violação e culpabilização dos sujeitos.

Nós, assistentes sociais da região Sudeste, reafirmamos e seguimos na defesa por uma sociedade antirracista, anticapacitista, antiLGBTfóbica, antietarista, antigordofóbica, antissexista, e anticapitalista.

QUEREMOS QUE NOSSOS CORPOS SEJAM ALVOS DA GARANTIA DAS
POLÍTICAS.

Construída coletivamente por: Nate e Micaela (CRESS-ES), Cíntia Neli e Vanessa
França (CRESS-SP), Bárbara e Liliane (CRESS-RJ) e Cecília e Luciana (CRESS-MG)

#descriçãodaimagem Card tendo como base a arte do evento. Ao centro a foto das companheiras que construíram o documento. O texto que está na imagem é o seguinte: Ao final do 51º Encontro Descentralizado dos CRESS da Região Sudeste, os delegados e delegadas  reunidos no Rio de Janeiro, entre os dias 24 e 26 de julho, construíram  a Carta Síntese do Encontro.