Debate no Conselho Pleno do CFESS apontou graves problemas da Lei 12.318/2010 e seus reflexos no trabalho da categoria
O Conselho Pleno do CFESS, realizado de 18 a 21 de fevereiro, abriu espaço para um importante debate sobre um tema que tem perpassado o cotidiano de assistentes sociais, principalmente de quem atua no sistema de justiça: a alienação parental.
Foram convidadas três especialistas para abordar o tema: Sibele Lemos, pesquisadora e coordenadora do Coletivo de Proteção à Infância e Voz Materna, Analícia Martins, psicóloga e pesquisadora em Psicologia Jurídica, e Edna Lima, assistente social do TJSP e pesquisadora da área.
O debate apontou os graves problemas e equívocos nos âmbitos científico, jurídico, político e social da Lei nº 12.318/2010 (LAP), que dispõe sobre a alienação parental, além de apontar seus reflexos no exercício profissional de assistentes sociais.
Mas, afinal, o que a Lei determina como “alienação parental”?
De modo geral, é um fenômeno no qual, em tese, a pessoa responsável pela criança e/ou adolescente, poderia, por diversos modos, tentar afastar aquele indivíduo do convívio com o pai ou a mãe, ou ainda promover campanha para desqualificar o exercício da paternidade ou maternidade.
Entretanto, segundo Sibele Lemos, o primeiro grave problema da LAP é que a mesma foi toda fundamentada em uma teoria não comprovada cientificamente, do psiquiatra estadunidense Richard Gardner. Chamada de Síndrome de Alienação Parental (SAP), a tal teoria define a alienação parental como um “treinamento” para que a criança ou adolescente odeie um dos seus genitores, rompendo laços afetivos, além de ocasionar sentimentos de ansiedade e temor.
“A grande maioria das entidades nacionais e internacionais não reconhece e refuta tal teoria, por sua falta de base científica”, denuncia a representante do Coletivo Voz Materna.
Entre os organismos citados estão a Associação Americana de Psicologia, por exemplo, que recomenda que por uma questão de ciência, lei e política, a SAP deve permanecer inadmissível nos tribunais; a Associação Americana de Psicologia; a Associação Psiquiátrica Americana, que não classifica a alienação parental como transtorno ou síndrome; a Associação Européia de Psicoterapia e a própria Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW).
Sibele destaca, inclusive, que a Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu a alienação parental da Classificação Internacional de Doenças (CID), ou seja, não é uma patologia, como afirmam defensores da SAP.
O segundo e maior problema da LAP é que ela é um “instrumento jurídico-legal para a manutenção da violência doméstica, num país que é o 5º lugar em feminicídios no mundo”, como explica Sibele Lemos.
“É uma forma de manutenção legal da violência doméstica, porque obriga o contato com o autor de violências; contraria as recomendações da CEDAW (n° 19, 28, 33 e 35); e impede a aplicação da Lei Maria da Penha e suas medidas protetivas para mulheres, extensivas a filhos e filhas”, complementa.
Ou seja, a LAP não só mantém as mulheres expostas a seus agressores, como também seus filhos e filhas a violência e abusos de seu genitor. “Quando uma acusação de alienação parental é incluída num processo, toda investigação é voltada para os indícios de uma suposta alienação, já que conta com a previsão legal de tramitação prioritária, sobrepondo-se inclusive a denúncias de violência”, completa.
Por fim, Sibele Lemos enfatizou o caráter machista e misógino da LAP, endossados e reproduzidos pelo judiciário brasileiro, que, conforme pesquisas, discrimina majoritariamente as mulheres. Além disso, convocou a sociedade a reforçar o movimento nacional pela revogação da Lei de Alienação Parental.
Um “mercadão” de laudos e petições
Na sociedade capitalista, a vida é tida como mercadoria. E não importa se essa vida é ameaçada ou extinta, desde que gere lucro.
E tem profissionais “lucrando” com a Lei de Alienação Parental, já que a legislação gerou um grande mercado de “especialistas” em elaborar petições e laudos fundamentados na LAP para processos de disputa de guarda, colocando em risco a vida de mulheres, crianças e adolescentes.
O direito é a área que mais se aproximou do tema, segundo a psicóloga e pesquisadora em Psicologia Jurídica, Analícia Martins. “Por que o direito se aproxima? Porque é uma alternativa punitiva. O Estado não investe em políticas públicas voltadas à igualdade de gênero ou à isonomia parental. São as mulheres as mais acusadas pela LAP”.
Analícia alerta também para os impactos sociais da Lei de Alienação Parental, enfatizando que sua popularização, ao longo de mais de uma década de existência, alargou um conceito frágil, que vem sendo utilizado cada vez mais pelos operadores do direito, reforçando o aparato punitivo e invasivo do judiciário.
“As pesquisas (sobre a síndrome de alienação parental) não são neutras, então, não podemos nos ater apenas ao debate da cientificidade. O fato de a SAP não entrar nos manuais classificatórios de saúde se dá também pela necessidade de se fazer um debate social e político sobre o tema. Precisamos avançar num debate de igualdade de direitos, de isonomia, de paternidade responsável e de direitos das mulheres, crianças e adolescentes”, reforça a psicóloga.
Por fim, Analícia Martins relembrou que quando a Lei nº 12.318/2010 (LAP) foi aprovada, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) foram ágeis em orientar profissionais, o que tem gerado, desde então, a realização de uma avalanche de cursos e oficinas para “treinar” pessoas a identificar essa suposta prática. “O que me parece, portanto, é que ‘lavagem cerebral’ é o que vem ocorrendo na nossa sociedade sobre o tema, com essa aliança entre os discursos jurídico-legal e psico-patológico”.
A relação da LAP com o trabalho de assistentes sociais
As situações de violência e violações de direitos apontadas por Sibele Lemos e Analícia Martins sempre chegam ao Serviço Social, para emissão de opinião técnica. Nesse sentido, desde a aprovação da Lei de Alienação Parental, profissionais da psicologia e do Serviço Social recebem convocação para emissão de laudos e pareceres acerca da temática, o que exige reflexões de ambas as categorias sobre seu papel nesse emaranhado já apontado, que tem impactos em âmbito social, político e científico e, especialmente, na vida de mulheres e crianças.
A assistente social do TJSP, Edna Lima, pesquisadora da área, salientou que não cabe a assistentes sociais “fazerem afirmações fatídicas do que é ou não alienação parental, e sim partir do entendimento e acúmulo do Serviço Social sobre o que é convivência familiar de crianças e adolescentes, sobre questões acerca da parentalidade e da igualdade parental” e sobre outros conhecimentos de domínio da categoria, como a questão da violência de gênero.
Assim, ela reforçou que a profissão já se utiliza de outros dispositivos legais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Maria da Penha, o Plano Nacional de Convivência Familiar, a Constituição Federal, o Código de Ética Profissional, que já fornecem elementos suficientes para abordagem teórico-técnica da categoria para análise de casos da área da família.
“Estamos sendo convocadas cotidianamente para analisar casos da chamada alienação parental. Mas defendo que não cabe a nós, assistentes sociais, nos amparamos em um instrumento punitivo do Estado. Qual é o nosso desafio? Em casos de perícias de abuso e violência sexual que, por vezes, são atravessados pela questão da alienação parental, cabe a gente dizer se é ou não? Nossa profissão carrega competências e saberes que nos dão elementos suficientes para a gente se posicionar, sem precisarmos fazer afirmações fatídicas a partir de algo sem cientificidade, sem acusações às mães”, defende a assistente social do TJSP.
Edna Lima chamou a atenção também para a necessidade de se ampliar o debate do Serviço Social dentro do sociojurídico acerca das questões de gênero e de relações de convivência familiar, em especial, nas varas da família, e mostrou-se preocupada com a qualidade da formação da categoria, em um contexto onde profissionais têm, cada vez mais, prazos exíguos para emissão de pareceres acerca de temas tão complexos, além de formas precarizadas de trabalho, como banco de peritos, estágio de pós-graduação, voluntariado. “A utilização de bancos de peritos, formados muitas vezes por profissionais de outras áreas, agrava o problema”, comentou.
Por fim, a assistente social do TJSP salientou a necessidade de se ampliar o debate no âmbito do Serviço Social e, para além da revogação ou não da Lei de Alienação Parental, é preciso pensar a atuação profissional no âmbito da convivência familiar e comunitária.
Na avaliação da coordenadora da Comissão de Orientação e Fiscalização (Cofi/CFESS), Lylia Rojas, o debate sobre a realidade das famílias brasileiras é perpassado por diversas formas de violência contra as mulheres. “Nós, mulheres, vivemos em um país onde homens justificam crimes de feminicídios em nome da ‘honra’. Por outro lado, há uma cobrança unilateral da sociedade que remete a responsabilidade pelo bem-estar da família às mulheres. Contudo, não notamos uma ação efetiva do Estado no sentido de enfrentar estas questões”, afirma a conselheira.
Nesse sentido, Lylia enfatiza que a LAP se tornou mais um mecanismo de criminalização das mulheres e que “não é possível compreendê-la de forma isolada”. “No cotidiano profissional é preciso, além de uma análise crítica e de totalidade, fazer uso da autonomia profissional e do conhecimento técnico, para enfrentar demandas institucionais inspiradas em concepções que conflitam com nossos princípios éticos”, complementa.
A coordenadora da Cofi destaca ainda que o trabalho da categoria deve ser instrumento de denúncia “que verbalize e vocalize a realidade da população usuária dos serviços onde assistentes sociais atuam”. “Não somos apenas espectadoras/es, podemos potencializar e enriquecer com dados e conteúdo técnico profissional, apontar as contradições e os enfrentamentos que, em relação à LAP, as mulheres são obrigadas a travar, diante de um dispositivo legal que retrocede na pauta dos direitos de mulheres e de crianças e adolescentes”, finaliza.
Presença do CFESS nos conselhos de direitos
As falas das especialistas durante o Pleno do CFESS deixaram nítido que o debate sobre Serviço Social e a Lei de Alienação Parental deve estar sempre presennte na agenda das entidades e da categoria.
O CFESS possui representações em dois conselhos de direitos que já se posicionaram contra a Lei 12.318/2010.
No último dia 11/2, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recomendou ao Congresso Nacional a revogação do Projeto de Lei (PL) nº 7.352/2017, que visa alterar a Lei da Alienação Parental. De acordo com o Conselho, “as mudanças propostas prejudicam mulheres e crianças, beneficiando homens, mesmo quando são agressores ou abusadores da mãe ou dos filhos”.
Além do projeto, o CNS também pede que parlamentares revoguem a Lei de Alienação Parental pelo mesmo motivo. A recomendação do CNS leva em consideração o Estatuto da Criança e do Adolescente e afirma que, constitucionalmente, é dever do Estado e da sociedade garantir a proteção integral e a absoluta prioridade desse segmento.
Conforme o CNS, a Organização das Nações Unidas (ONU) orienta a coibir e banir os termos ligados à síndrome da alienação parental nos tribunais por entender que prejudica mulheres e crianças, em especial aquelas em situações de violência doméstica e familiar, além dos casos de abuso sexual.
Um dos pontos da Recomendação CNS nº 3/2022 que dialoga diretamente com os conselhos de regulamentação, em especial o CFESS, o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Psicologia, é o pedido de banimento, em âmbito nacional, do uso dos termos síndrome de alienação parental, atos de alienação parental, alienação parental e quaisquer derivações sem reconhecimento científico em suas práticas profissionais.
Já o Conanda, também por meio de nota em 2018, manifestou preocupação sobre o conceito de ‘alienação parental’, afirmando a falta de amparo científico sobre o tema e a ausência de discussão e escuta dos sujeitos que estão diretamente envolvidos com a matéria.
“Para o Conanda, já existem previsões legais protetivas e suficientes no que tange aos direitos de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, merecendo destaque a garantia de guarda compartilhada, o que, no entender deste Conselho, já é suficiente para assegurar o convívio com ambos os genitores”, diz trecho da nota.
No âmbito do Conjunto CFESS-CRESS, o debate está posto, principalmente acerca do exercício profissional, que, conforme apontado durante todo o debate, possui elementos de sobra para demonstrar que a categoria não precisa se amparar em conceitos não científicos, muito menos reforçar o aparato punitivo do Estado, como o da alienação parental, para poder emitir laudos e pareceres acerca de questões que envolvem a convivência familiar, situações de violências contra as mulheres e casos de abusos contra crianças e adolescentes.
”Como nos posicionamos na perspectiva de proteção social de crianças, adolescentes, mulheres e demais membros da família que se encontram nessa situação? Em quais fundamentos teóricos e éticos nos respaldamos? O trabalho social com famílias é histórico em nossa profissão. Uma perspectiva crítica sobre as opressões estruturais presentes em nossa sociedade e as concepções idealizadas ou preconceituosas sobre famílias, se faz fundamental”, indaga a conselheira do CFESS Emilly Marques, da Comissão de Ética e Direitos Humanos (CEDH).
Cabe também ao Conjunto, em diálogo com a categoria, realizar debates e orientações que reafirmem que a Lei de Alienação Parental não deve fundamentar o trabalho de assistentes sociais, bem como manter as ações de orientação e fiscalização do exercício profissional no espaço sociojuridico.
Nesta seara, em 2019, o Conjunto CFESS-CRESS promoveu a terceira edição do Seminário Nacional Serviço Social e o trabalho de assistentes sociais no Sociojurídico, que pode ser visto pelos links abaixo.
Assista na íntegra ao primeiro dia do Seminário
Assista na íntegra aos debates do segundo dia do Seminário
Importante destacar também as publicações do CFESS que contribuem para o exercício profissional no sociojurídico.
São elas: Atuação de assistentes sociais no sociojurídico: subsídios para reflexão e o compilado das palestras do 2º Seminário Nacional de Serviço Social no campo Sociojurídico.
Conselho Pleno do CFESS
Além do debate sobre a alienação parental, nos quatro dias que o Pleno esteve reunido foram discutidas também questões como a resolução sobre Processo Eletrônico e Atos Processuais Remotos (já disponível no site); providências administrativas; campanha “Nós, Mulheres, Assistentes Sociais”, que será lançada dia 7/3; Emissão do Documento de Identidade Profissional/DIP; eleições do Conselho Nacional de Assistência Social; organização política do CFESS nos diversos assentos de conselhos; Seminário Latinoamericano de Serviço Social; lançamento de e-book de pareceres jurídicos de orientação e fiscalização; entre outros.
*Via Conselho Federal de Serviço Social – CFESS